domingo, junho 25, 2006

D.Q.N.C. - parte 7 - capítulo 2

«Aceno de cabeça para te dar razão. Eu sabia bem o que tínhamos perdido. Talvez tenha sido a rotina que nos deixou assim, sem tempo para olharmos um para o outro. Eu sempre te levei o pequeno-almoço à cama para ver se algo mudava, se quebrávamos os hábitos, mas tinha acabado por se tornar um autêntico monólogo em que tu falavas do teu trabalho e eu apenas respondia com alguns grunhidos. Queria dizer-te isto, mas não sei como. Tu sabes bem que tento levar as coisas para a brincadeira.

…rir para não chorar…

Talvez tenha ido um pouco longe demais e devesse mesmo chorar, agarrada a ti para me limpares as lágrimas com beijos como fizeste há pouco. Há males que vêm por bem. Quem diria que esse teu sonho tão estranho nos iria aproximar como fez hoje? Eu sempre te apoiei, sempre estive ao teu lado. Lembraste de quando tentaste publicar o teu romance? Não o quis ler, pois confiava em ti, acho que foi injusto terem-te despachado do gabinete daquela forma. Apenas disseram que o mercado estava cheio de novos autores como tu e que o que as pessoas procuravam no fundo eram os grandes escritores com as suas palavras duras e poderosas.

…sussurrar Sophia, cantar Pessoa, rugir Saramago…

Tu concordavas, no fundo gostavas de livros com significado. Mas desde esse dia vi-te comprar qualquer publicação que surgisse de um qualquer autor recente ou em ascensão. Não sei se os leste mas lá estão eles na mesinha de cabeceira. Capas de cores berrantes, letras irreverentes… E apesar de tudo continuo a ver-te no escritório a sentires a rugosidade das capas dos livros antigos que herdaste, cheirares as páginas amareladas, por vezes danificadas, e ouvir-te dizer
- Sei a que cheira exactamente uma grande obra.
Sempre tiveste a mania dos cheiros, adoras ervas aromáticas, sabão, os estrugidos que me vês cozinhar ao fim-de-semana, também dizias que eu cheirava bem. Vou considerar isso um elogio.

…velhas essências em frascos de vidro…

Se há memória que guardo sempre é de quando fui pela primeira vez a casa dos teus pais na aldeia. Tiveram dificuldade em acreditar no nosso amor surgido assim do nada, confidenciado apenas pelo mar e os areais. Acho que inventámos uns floreados na história para a fazer parecer mais decente, mas a tua mãe, claro, nunca acreditou.»

sábado, junho 24, 2006

D.Q.N.C. - parte 6 - capítulo 2

Desculpem o atraso... Exames...


«Sem dúvida que te estava a magoar, deixei-te os meus dedos marcados a vermelho. Abanaste a cabeça e olhaste o chão, também não sabias responder.
- Desculpa, amor, mas sempre tivemos aí o rio mesmo ao lado de casa e nunca tinha acontecido nada disto, nunca tiveste pesadelos. Tens medo da água? O rio significa algo para ti? Sei lá, podíamos tentar encontrar a raiz do problema…
Mexia-te no cabelo, se queríamos resolver isto teríamos de trabalhar em conjunto. O teu olhar continuava a tentar perfurar o chão, talvez te tivesse magoado com alguma palavra menos bem pensada mas tu sabes que eu me importo, que quero saber, que realmente me preocupo.
- Resume-se tudo a perda e posse.
Incentivei-te a continuar com um movimento de cabeça.
- Sentimento de perda se não respondo ao teu chamado, se te deixo ser consumida pelo rio, medo de te perder na realidade. Posse quando tenho vontade de me atirar ao Douro e te perseguir por entre os rabelos. Talvez seja uma premonição, talvez… Sabes? Vocês têm a intuição feminina, porque não uma intuição masculina?
- Mas há intuição masculina, sim. Sabes aquela vozinha que te diz em que prateleira do frigorífico está a cerveja em dias de futebol?
- Não sejas assim…
- Eu só acho… Sei lá o que eu acho, mas não me vais perder, eu estou aqui contigo não estou? Eu nem sei nadar bem, o que iria fazer ali para o meio?
Senti o teu abraço apertar-se mais. Fiquei assustada com essa história de premonição, claro que fiquei, mas prefiro não pensar nisso. Porque razão algo haveria de estragar a nossa felicidade? Tu sabes bem que apesar do que digo levo esse sonho a sério, tu conheces-me. Rir para não chorar, já dizia o meu pai. Olho para o Douro pela janela e até a mim ele me parece diferente. Tento imaginar-me a dançar nas águas, mas desisto facilmente, tenho uma imagem minha, má o suficiente, para me permitir esta humilhação. Suspiras.
- Está quente…
- Pois está.
- Lembras-te de quando nos conhecemos?
- Claro! Aquele dia no café com os amigos…
- Hmm, não… Foi na praia.
- Praia? Que praia?
- Da Nossa Senhora da Rocha, no Algarve.
- Não foi no café do…
- Não.
- Ia jurar…
- Mas não, não foi. Ao menos lembras-te de como?
- Claro que sim, meti conversa contigo, achaste-me piada, eu até era giro e tal, pediste-me o meu número de telefone…
- Desculpa?
Riste-te.
- Agora estava a brincar contigo. Estavas no mar, eu fui ter contigo, ficámos a olhar um para o outro…
- Sorrimos, corámos os dois e nunca mais nos perdemos de vista.
Voltámos a corar e a sorrir.
- Há quanto tempo não tínhamos uma conversa decente?
- Um, dois anos…
Olhaste-me, incrédulo, mas em segundos o teu rosto encontrou alguma concordância com o que eu acabara de dizer.
- O que já perdemos…»

sábado, junho 10, 2006

D.Q.N.C. - parte 5 - capítulo 2

Muda o capítulo... Agora é ela a falar...

«2
O meu nome ressoando nas paredes, galgando pela escuridão. Ouvi-te chamares-me outra vez. Mas afinal que se passa contigo, amor? Que raio de sonho é esse que em vez de te fazer dormir te desperta tanto e de forma tão violenta? Desço as escadas a correr, não quero saber do soalho que range, sinto uma pontada dentro da alma que me faz querer abraçar-te e sussurrar-te ao ouvido que tudo está bem. Abri a porta do escritório de rompante, encontrei-te no cadeirão, com o rosto todo suado, cara de sofrimento, contorcias-te. Abracei-te, desatei a chorar.
- Está tudo bem, amor, está tudo bem, estou aqui…
Beijei-te na testa, peguei-te na mão. Abriste os olhos, agarraste-te a mim, parecias ter perdido o norte.
- Desculpa, Esperança, desculpa…
- Não peças desculpa, está tudo bem.
- Não, não está, estou a dar em doido com estes sonhos. É tão estranho, sinto que te perco.
- Não perdes, sabes que não. Como haverias de perder esta mulher desajeitada de roupão e cabelo desgrenhado que é tolinha por ti?
Sorriste. Beijaste-me e encostaste a cabeça no meu ombro. Pus-te uma mão no peito. O teu coração ameaçava saltar. Como poderia um sonho pôr-te assim? Sempre foste tão forte.
- Esperança…
- Hmm?
- Não deixes que ela me leve.
Desorientada. Mas seria melhor não fazer perguntas, estavas irreconhecível. Nestes anos todos que passei contigo nunca te tinha visto assim. Os teus olhos castanhos tinham escurecido, pupilas reduzidas, no teu rosto sereno encontrava agora um homem confuso e com medo, fitavas um ponto qualquer na parede tentando recompor as ideias. Em alguns minutos mudaste. Limpaste-me as lágrimas com beijos, vi-te sorrir, pegaste-me ao colo. Apanhaste-me desprevenida.
- Revejo-me no abraço desses momentos a sépia.
- Bonita frase, de quem é?
- Tua. Fi-la para ti.
- Então porquê?
- Porque te amo.
Arqueei uma sobrancelha.
- Então e que momentos são esses?
- Quando estou no escritório e ouço o eco dos teus passos nas escadas e sei que vais entrar e pedir-me que me deite, quando de manhã entras com aquele sorriso lindo e me trazes o pequeno-almoço ou mesmo quando dormes e o teu cabelo solto te envolve, serena, e eu fico a observar-te…
- Olha, diz-me uma coisa, por acaso fazemos anos de casados e eu esqueci-me?
- Não sejas assim…
- Pronto, está bem, não digo mais nada.
- Resmungona…
- Muito!
Fizeste-me dar uma volta nos teus braços. Beijaste-me no pescoço, ainda sentia um arrepio na espinha sempre que o fazias. Ali, no meio de toda aquela escuridão, eras capaz de gerar luz apenas com a tua energia. Escutando o silêncio, demos conta que ambos tínhamos os corações a baterem muito depressa, sorrimos. Puseste-me no chão, abraçaste-me. Olhei o relógio, fiz um comentário qualquer depreciativo. Ignoraste o que disse, em vez disso elogiaste-me, perdi-me nos teus olhos. Demos as mãos e sentei-me ao teu colo no cadeirão. Ambos a olharmos pela janela que dava para o Douro.
- Que presença é essa no rio que te assusta tanto?
- Tu…
- Bem, obrigada pela parte que me toca.
- Nada disso. Sinto que não fazes parte do meu mundo, vejo-te dançar nas águas, ser levada pelo vento, deslizar nas correntes e sinto-te distante. Ao mesmo tempo parece que me chamas e sinto-me tentado a procurar-te no fundo do rio.
Agarrei a tua cara com ambas as mãos, obriguei-te a olhar-me nos olhos. Devia estar-te a magoar.
- Estou aqui, porque procuras lá?»

terça-feira, junho 06, 2006

D.Q.N.C. - parte 4

«Fiz o mínimo de ruído possível. Sei que tens o sono leve e, hoje, já houve desentendimentos que chegassem. Sinto-me tão infantil! Eu até sou daquelas pessoas que ficava frustrada quando diziam “sonha comigo que eu vou sonhar contigo” porque nunca fui capaz de me lembrar de sonho nenhum, e agora acontece-me isto! Mas é tão real, o teu cheiro nas minhas entranhas, a tua voz a fazer estremecer o fundo da minha espinha. Talvez um leite morno me acalme. Olho para o relógio, 01:37, e eu sem sono nem vontade de dormir. Amanhã, felizmente, não trabalho.
Não há leite no frigorífico, aponto no post-it que está colado no armário e vejo a minha a letra contrastar com a tua. Sempre contrastámos, mas gosto que seja assim. Em alternativa ao leite morno decido sentar-me em frente ao computador portátil. Abro a porta do escritório e sou atacado pelo intenso cheiro a tabaco, tusso, começo a levar-te a sério quando dizes que tenho que deixar de fumar. Inevitavelmente fico sentado em frente à janela que dá para o Douro mas não manifesto qualquer interesse, caí em mim. Escrevo qualquer coisa para te dar, compensar momentos como este em que me aturas com uma devoção e paciência dignas de pouca gente.
- Que dizer senão que te amo?
Rebusco nos meus pensamentos em busca de uma palavra-chave, uma frase, qualquer coisa por onde possa começar, escrever-te as minhas confissões por mais banais que sejam.

“Revejo-me no abraço desses momentos a sépia”

Não tenha a certeza se gosto, apesar de saber que vais gostar, sempre gostaste, sempre me apoiaste. Lembras-te quando eu tentei arranjar uma editora para publicar um romancezito de meia tigela que escrevi há uns anos atrás? Nunca o leste, não quiseste, mas apoiaste-me incondicionalmente, pousavas a tua mão na minha e sentia-me renovado, protegido pela força interior que encerras dentro de ti. E os teus olhos verdes a brilharem, o teu cabelo a cair-te sobre a cara, o teu pescoço nu e comprido, os teus lábios ternos que me sorriem… A tua dança no… Não, não…

…a tua…

Não, não posso, desta vez não. Quero manter-me na realidade, porque este sonho ou pesadelo que me envolve não me deixa escapar. Traidoras e tristes as solitárias sereias do rio que me consomem!

…dança no…

Resisto. O teu corpo nos lençóis. A tua preocupação. Desta vez não te vou chamar, não posso fazer-te isso, estou a dar cabo de ti e de mim também, a tua essência sufoca-me e já não reconheço a tua voz, a escuridão assola-me e sinto-me em queda permanente. Salva-me agora antes que me perca para sempre.

…Douro.

Não consigo mais. Não te posso chamar, não te posso fazer sofrer. O Douro. A tua dança. Os teus cabelos. A essência que me sufoca. Não és tu, agora tenho a certeza que não és tu. Já não me chamas, ordenas-me que me aproxime, que salte a janela e voe para o fundo escuro do rio. Nunca vi o teu nome adequar-se tanto à minha condição de perdido, vou ter que te chamar, só tu me podes acordar deste pesadelo…»

sexta-feira, junho 02, 2006

D.Q.N.C. - parte 3

«Lá estavas tu outra vez, mas agora só te ouvia ao longe. Levantei-me de repente, saí porta fora. Não quis saber do ranger do soalho. A janela. Danças de novo? Chamas-me… O teu corpo cor de canela suado, a luz do teu sorriso, a vontade de te abraçar, os teus olhos verdes a fixarem-me. Chamo-te, apenas sorris. Não percebo, não percebo…Não duvidei que fosses tu até ouvir uma voz que me chamava de outro lado, de qualquer lugar que me parecia distante e quebrava todo o silêncio tal como o eco dos teus passos. Dediquei-me a tentar escolher que voz seguir. Conflito de consciências. Optei pela segunda e aí fui capaz de ouvir com clareza.
- Estás bem?
Abri os olhos com um esforço descomunal, um clarão mesmo por cima de mim dificultava-me a tarefa. Vi-te. O cabelo todo caído para o lado esquerdo do pescoço, ar preocupado.
- Que se passa?
- Sei lá que se passa, de repente começaste a chamar-me!
Não disse nada, não sabia como me justificar. Não podia voltar a falar-te do sonho, da indecisão de que voz seguir. Agarraste-me uma mão.
- Amor, tens a certeza que estás bem? Estou preocupada contigo…
- Foi um sonho mau, só isso.
- Mete uma coisa na cabeça, já não tens idade para sonhos maus! Que é que se passa contigo, por amor de Deus?
Viraste-te para o teu lado e desligaste a luz. Não quiseste resposta nem me deste oportunidade para responder. Percebia a tua preocupação mas não sabia como te acalmar porque também estava perturbado. Decididamente não ia conseguir dormir. Vislumbrei uma última vez o teu corpo enroscado nos lençóis, sentei-me na cama com as mãos a apoiarem a cabeça.
- Estarei a ficar maluco?
Trinta e seis anos e já com visões. Ouvi dizer que há doenças do foro psiquiátrico que podem causar alucinações, será o meu caso? Não pode, é tudo tão real… Sondei o quarto com o olhar. Cinzeiro, molduras com fotografias do casamento, sapatos no chão, revistas de automóveis empilhadas a um canto, livros que compro mas que acabo por não ler na mesinha de cabeceira, camisa amarrotada perto da porta…
- É melhor levantar-me.»