domingo, julho 30, 2006

D.Q.N.C. - parte 11 - capítulo 3

«Não me pareceste muito desapontada, talvez surpreendida. Os olhos são o espelho da alma e no momento os teus estavam cobertos. Fiquei a olhar aquelas filas intermináveis de velhas essências em frascos de vidro. Alguns deveriam estar estragados, mas eu confiava na minha mãe e ela deveria tê-los substituído entretanto. Abri um frasco, absorvi aquele aroma. Coloquei-to debaixo do nariz.
- A que te cheira?
Fizeste má cara. Eu ria-me. Sabias que já tinhas cheirado aquilo mas não te recordavas onde. Voltaste a inspirar e outra vez, e outra e outra. Cerraste os lábios e arriscaste uma resposta que foi a que te pareceu mais plausível.
- Ao arroz que fazes quando és tu a cozinhar…
Ri-me.
- Cheira assim tão mal?
- Não, tu sabes que cozinhas melhor que eu. Começo a achar que é por causa dos segredos desse armário.
- É. E nas noites de lua cheia tenho um caldeirão onde faço bruxedos.
- Não gozes comigo, amor. Mas acertei ou não?
Encostei a boca ao teu ouvido e sussurrei. Sentia-te estremecer devido à proximidade do teu pescoço. Ficavas sempre sensível.
- Sim… É louro.
Sorriste.
- Passemos então ao próximo, chefe.
Olhei de novo o armário. A paleta de um bom cozinheiro, ervas coleccionadas ao longo do tempo, muitas delas colhidas directamente da natureza. “Sou tão rústico”, pensei para mim mesmo e sorri de satisfação. Não era um cenário que muitos homens citadinos tivessem a oportunidade de ver. Passei o dedo pelos frascos até encontrar outro que te pudesse dar a cheirar. Um deles, que tinha uma planta vermelha, agradou-me. Encontrava-se facilmente nos hipermercados mas esta era diferente. Frasco debaixo do teu nariz. Inspiraste apenas uma vez.
- Tu gostas mesmo de arroz. Este faz-me lembrar o teu arroz de pato.
- E…?
- E tenho o nome mesmo debaixo da língua.
- Tu gostas do meu arroz porquê?
- Porque é diferente dos outros, fica sempre muito…
- Muito…?
- Muito… Amarelo. Então isso é… Açafrão?
- Sim senhora, estava a subestimar-te.
- Depois disto ganho um carro?
- Um armário.
Riste-te. Fui-te dando mais algumas ervas a cheirar. Conheceste os cominhos, deliciaste-te com a canela, quase espirraste com a pimenta e ficaste fascinada com o tomilho, o cravo e o cravinho, os coentros e o aroma adocicado das ervas que tinham nomes mais complexos. Só no fim, já não tão absorto naquele fascínio, é que reparei que a tua cadeira ainda rangia. Tirei-te a venda, os teus olhos estranharam a claridade. Coçaste o nariz. E sorriste.

Voltei ao presente, olhávamos o Douro sem o ver. Era capaz de jurar que falávamos um com o outro sem uma palavra sequer ser trocada. Jurava cheirar as ervas na sala e tive por momentos o armário na memória. Tínhamos decidido não o restaurar ou a madeira perderia muito do cheiro que tinha adquirido com os anos e desapareceria todo o misticismo. Lá estava ele na nossa cozinha, verde desmaiado, flores cor-de-rosa na porta e outros desenhos que nunca conseguimos identificar. Sei que às vezes ainda lá vais sentir a sua textura rugosa, rendeste-te a amá-lo, lembras-me a minha mãe quando estava bem disposta. É um elogio, a sério, escusas de ser irónica.»