terça-feira, agosto 22, 2006

Exercício mental + D.Q.N.C. - parte 12 - capítulo 3

A dor de magoar os outros. De ferir. De rasgar. Ver quem por nós se mata, morrer. E assistir na nossa ingénua inocência os punhais que nos saltam das mãos, do corpo, dos olhares. Um assassino nunca se confessa. Não por um crime que não comete. Assiste. Mas impávido. Como quem mata também. Pela lacuna de reacção. Pela indiferença a quem por nós se verga e sofre. Uma mão ao peito. Súplicas contidas em olhares que não olham nos olhos enquanto perguntam «Onde estiveste hoje?». Traição. Mentira. Mas como podem eles perceber que sejamos felizes com mais alguém? Com outro alguém. Também. Mas o amor não deixa separar, não quer matar nem ser morto e cria em si mesmo uma mentira maior que o que realmente quereríamos que fosse. Infiéis. E mais do que isso criminosos. Pois matamos na recusa de querer matar.

(Traições... Coisa feia, não é? Deus me livre... Pequeno exercício mental, estou a ficar muito, muito enferrujada... While listening to Rihanna - Unfaithful)

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«Comparo o teu fascínio pelo armário à paz que me dá o ranger do soalho das escadas. Parece que tudo o que é velho me conforta. Até eu que vou envelhecendo me sinto reconfortado, acima de tudo pela tua presença. Aqui, de mãos dadas a ver o rio, quem sabe recuperando muito do que perdemos nestes anos. Continuo sem perceber porquê ou como isto nos aconteceu… Sempre me levaste o pequeno-almoço à cama, será que ao pensar que te estava a dar atenção estava era enfiado no meu pequeno mundo de egocentrismo, que é o meu emprego, e não te olhava? Mas sempre me pareceste interessada. Bem, também não significa nada, sempre me apoiaste porque haverias de bocejar ao ouvir-me falar se sempre escondeste isso tão bem?

…todas as faces que beijo de manhã…

Sempre foste muito misteriosa para mim. A faceta de selvagem, a de mulher prendada, a de aventureira curiosa, a que nunca conheci que é a do teu emprego, a de melhor amiga, a de amante carinhosa. Tantas mulheres que eu aprendi a conhecer e amo sem saber, e a todas por igual. Todas elas com os mesmos olhos verdes, o mesmo cabelo comprido a cair do lado esquerdo (ou direito) do pescoço, as mesmas mãos secas e ternas, a mesma pele morena e brilhante… A que dança no Douro… E depois há uma outra que é a das águas, a que eu não quero conhecer, a que me engana, a que não és tu. Neste momento, nem que ela suplicasse todas as letras do meu nome a socorreria daquela fome de alma, porque agora tenho-te aqui comigo, estou abraçado a ti e nada me pode demover. O teu pescoço e a essência da minha vida.

…o meu porto seguro todas as noites…

Não sei que horas são, não terás que ir trabalhar? Já dormes. Não dei conta. Levanto-me contigo ao colo, o teu corpo inerte. Sossega-me sentir a tua respiração junto do meu peito. Gosto tanto de te ver dormir…
Subo as escadas e reparo pela primeira vez que apenas tu fazes ranger o soalho, talvez por teres cuidado a mais. Abro a porta do quarto com o ombro. Afasto os lençóis da cama já desfeita, deito-te e cubro-te. Parece que nunca daí saíste. Um odor a tabaco insiste em me quebrar a concentração. Fulmino o cinzeiro com o olhar, pego nele e pouso-o algures no corredor, longe de ti. O teu vulto nos lençóis. Deito-me também, ganho forças para dormir, barriga para cima. Tantas rachas no tecto, mandamos arranjar ou esperamos ganhar-lhes amor também? Não me respondes, já dormes, é melhor assim. Amanhã vais fazer uso dos teus dois mil cremes para a cara e vais conseguir sair de casa sem olheiras, já te vi fazeres isso antes. Não te censuro, mas és tão despreocupada com certos assuntos e não deixas passar umas covas escuras nos olhos. Os seres humanos são engraçados, não haja dúvida.»

1 Comments:

Blogger Unknown said...

yep... trair é feio! mas bonito é o teu texto! =)

3:21 da tarde  

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