08/01/2006
Hora de mostrar os podres... Os inacabados...
«Uma luz na janela. Um beijo perdido nas réstias de escuro. Um abraço fugidio. E a despedida. Abraças-me contra o teu corpo de vidro. Frágil. O som impaciente de quem espera no carro. Espera por ti. Peço-te que não vás. Sussurro. A porta do carro bate lá fora. Silhueta nervosa à porta. A chuva cai como se jurasse arrastar o chão consigo. Olhas o relógio. Tique nervoso.
- Demoras muito, querida?
- Nada, nada mesmo.
E apeteceu-me cuspir contra a tijoleira a forma como ele te chamou de “querida”. Que raio de nome era esse? Mataria aquele homem com os dentes se mo permitisses. Mas não. E sorrio apenas.
- Porque estão às escuras?
Vejo a sua sombra tactear a parede em busca de um interruptor. Encontra-o. A luz não acende.
- Faltou a luz há pouco.
- Tudo bem. Despacha-te, querida, estou à tua espera no carro.
Virou costas. Desapareceu. Revolvo tudo o que aconteceu. Vinhas cá buscar o resto das tuas coisas para te mudares para casa dele. Eram poucas. Um caixote apenas. Ele esperaria no carro enquanto tu entravas e saías em três minutos. Não seriam precisas muitas conversas, afinal eu era o teu ex-marido. Resumia-se tudo a vir buscar a porcaria do caixote. As últimas míseras recordações da nossa vida em conjunto. Blasfémia da vida. Quis o destino que a luz falhasse e que, num impulso que ainda eu encontro dificuldade em explicar, ambos tenhamos sucumbido ao desejo, talvez saudade, e num estado mais desenvolvido, nostalgia. Senti o caixote cair-te aos pés quando tudo ficou escuro. Perdi o teu nome da boca uma única vez e devolveste-mo com os lábios. E foi assim. Tão estranhamente familiar. Tão lascivamente impróprio. Tão deliciosamente pecaminoso. Um abraço apertado nos braços que já me pertenceram. E de novo o vulto na porta. “Querida”. Nunca te chamei de “querida”. Talvez por isso me tenhas deixado.
- Ou fui eu que te deixei?
Já lá vais. Vi-te entrar no carro com o caixote. Ele beijou-te na testa. Senti asco. Na boca o ácido vindo do estômago. Vocês merecem-se.
- Merecem-se!
Não fossem os meus sentidos tão crassos e teria descoberto antes. Não teria tentado reconquistar-te tão cegamente. Não teria falhado perante tão miserável concorrência. Não teria. Ou talvez só o diga para abrilhantar o ego. Não andasse já a minha auto-estima a roçar valores negativos e eu não desistiria de ti. Não o faria. Lutaria até aos irrevogáveis confins da minha força.
“Força – toda a energia ou potência capaz de operar, de produzir um efeito;”
Irrevogáveis até certo ponto. Não tivesse até o ilimitado os seus limites. Quantas vezes não dissemos “para sempre”, e este foi desfeito em poucos meses? Deixei de acreditar nos sempres da vida. Acredito nos amanhãs, nos ontens, nos para a semana. Acredito no tempo não remoto. Acredito no que tenho poder para controlar. Embora cada vez mais o domínio se me escorrace das mãos. E, neste momento, sinto que o único domínio que me resta é o de me tentar manter vivo. Tu, já foste. O amor também. E começo a definir-me em incertezas acerca do ar que respiro.
A lua que urge no céu. Na emergência de a consumir com o olhar, encosto-me à janela. Embacio o vidro. Baço fica o mundo lá fora. A chuva fere o chão incessantemente. Que horas serão? Não sei… Deslizo até ao sofá. Preciso da minha irmã aqui. Sei que me abraçaria, me diria a pessoa horrível que és e, mesmo assim, conseguiria que não me sentisse culpado por te amar. Antes ave canora na minha vida, agora móis-me na incerteza da tua mercê. Esquadrinho o espaço com o olhar e observo o quão vazio se torna. O telefone. Levanto-me. Pego-lhe. Marco o número da minha irmã. Leanora. Desisto. E um ímpeto fatídico força-me ao botão vermelho. Fim de chamada. Sou forte o suficiente. E mais do que força range-me o meu orgulho. Toca-me. Estala-me. Brada-me na cabeça que nunca dependi de outrem. E não dependo. Não. Nada disso. Rejeito-o. Abrevio-me no meu fado de lobo eremítico e uivo absolutamente só aos seis sóis do meu mundo. Ninguém o compreende. Isolo-me. Carente e molestado pela lacuna de afectos que temo em mendigar.»
- Demoras muito, querida?
- Nada, nada mesmo.
E apeteceu-me cuspir contra a tijoleira a forma como ele te chamou de “querida”. Que raio de nome era esse? Mataria aquele homem com os dentes se mo permitisses. Mas não. E sorrio apenas.
- Porque estão às escuras?
Vejo a sua sombra tactear a parede em busca de um interruptor. Encontra-o. A luz não acende.
- Faltou a luz há pouco.
- Tudo bem. Despacha-te, querida, estou à tua espera no carro.
Virou costas. Desapareceu. Revolvo tudo o que aconteceu. Vinhas cá buscar o resto das tuas coisas para te mudares para casa dele. Eram poucas. Um caixote apenas. Ele esperaria no carro enquanto tu entravas e saías em três minutos. Não seriam precisas muitas conversas, afinal eu era o teu ex-marido. Resumia-se tudo a vir buscar a porcaria do caixote. As últimas míseras recordações da nossa vida em conjunto. Blasfémia da vida. Quis o destino que a luz falhasse e que, num impulso que ainda eu encontro dificuldade em explicar, ambos tenhamos sucumbido ao desejo, talvez saudade, e num estado mais desenvolvido, nostalgia. Senti o caixote cair-te aos pés quando tudo ficou escuro. Perdi o teu nome da boca uma única vez e devolveste-mo com os lábios. E foi assim. Tão estranhamente familiar. Tão lascivamente impróprio. Tão deliciosamente pecaminoso. Um abraço apertado nos braços que já me pertenceram. E de novo o vulto na porta. “Querida”. Nunca te chamei de “querida”. Talvez por isso me tenhas deixado.
- Ou fui eu que te deixei?
Já lá vais. Vi-te entrar no carro com o caixote. Ele beijou-te na testa. Senti asco. Na boca o ácido vindo do estômago. Vocês merecem-se.
- Merecem-se!
Não fossem os meus sentidos tão crassos e teria descoberto antes. Não teria tentado reconquistar-te tão cegamente. Não teria falhado perante tão miserável concorrência. Não teria. Ou talvez só o diga para abrilhantar o ego. Não andasse já a minha auto-estima a roçar valores negativos e eu não desistiria de ti. Não o faria. Lutaria até aos irrevogáveis confins da minha força.
“Força – toda a energia ou potência capaz de operar, de produzir um efeito;”
Irrevogáveis até certo ponto. Não tivesse até o ilimitado os seus limites. Quantas vezes não dissemos “para sempre”, e este foi desfeito em poucos meses? Deixei de acreditar nos sempres da vida. Acredito nos amanhãs, nos ontens, nos para a semana. Acredito no tempo não remoto. Acredito no que tenho poder para controlar. Embora cada vez mais o domínio se me escorrace das mãos. E, neste momento, sinto que o único domínio que me resta é o de me tentar manter vivo. Tu, já foste. O amor também. E começo a definir-me em incertezas acerca do ar que respiro.
A lua que urge no céu. Na emergência de a consumir com o olhar, encosto-me à janela. Embacio o vidro. Baço fica o mundo lá fora. A chuva fere o chão incessantemente. Que horas serão? Não sei… Deslizo até ao sofá. Preciso da minha irmã aqui. Sei que me abraçaria, me diria a pessoa horrível que és e, mesmo assim, conseguiria que não me sentisse culpado por te amar. Antes ave canora na minha vida, agora móis-me na incerteza da tua mercê. Esquadrinho o espaço com o olhar e observo o quão vazio se torna. O telefone. Levanto-me. Pego-lhe. Marco o número da minha irmã. Leanora. Desisto. E um ímpeto fatídico força-me ao botão vermelho. Fim de chamada. Sou forte o suficiente. E mais do que força range-me o meu orgulho. Toca-me. Estala-me. Brada-me na cabeça que nunca dependi de outrem. E não dependo. Não. Nada disso. Rejeito-o. Abrevio-me no meu fado de lobo eremítico e uivo absolutamente só aos seis sóis do meu mundo. Ninguém o compreende. Isolo-me. Carente e molestado pela lacuna de afectos que temo em mendigar.»
1 Comments:
eu que sou um sortudo já conhecia =D
está lindo! agora é continuares! começaste agora acabas... e o começo parece-me bem, por isso aplica-te! =P
mas porque lhe chamas podre?? fosse tudo o q é podre assim...
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