segunda-feira, março 20, 2006

«Era corromper o nevoeiro. Ver as estrelas cair como pardais a desmaiar ao vento. Tiro certeiro no peito. E agarrar o corpo ao chão com medo de cair mais ainda. Um suspiro. Uma nuvem que passa e traz consigo cinco segundos de silêncio. Talvez quatro. Pegar num guardanapo e nele escrever um poema. Limpar a boca. E deixá-lo voltar à cozinha no prato. Fazer alguém feliz com a recordação de um amor que nunca viveu. E sonhar. Porque se os outros estão bem, eu estarei bem. E é a vida que se ilumina. Que se cospe dos murmúrios depressivos do passado. Falar francês porque quero. Porque não sei. Porque quero fingir. E “o poeta é um fingidor”. E gosto de Pessoa. E gosto das pessoas. E do mundo e do sempre e do nunca e do tarde e do cedo e da sorte e do azar e do sim e do não. E de escrever palavras sem sentido. Sem regras. Porque um dia alguém me disse “Quando quiseres que tudo pareça ter mais significado, diz coisas sem sentido. O que tem sentido nunca tem significado”. E eu gostei. E eu ouvi. E eu digo. E porque sim.»

Devaneio mental…

quarta-feira, março 15, 2006

As badaladas. Som que rompe o escuro e lambe as paredes corroídas pelos anos. Pequenos passos nas escadas de madeira. Tímidos. Como se temessem o que o mundo ainda tem a mostrar a quem abre os olhos pela primeira vez. Um cobertor. Cheira a mofo e conforta. Aquece. Não está frio. Mas agradece-se a companhia do toque. Uma dança em castelos de ar, em rios de alumínio e diamantes que ferem os pés. Tímidos. Um sonho que não acaba. Um abraço ao vento alcançando a ilusão de um amor ainda perdido. Alguém de joelhos. Mão na mão. Olhos nos olhos. E uma nova dança. E o cobertor a escorregar pelos ombros, a pender sobre a cintura, a cair inerte no chão. E o escuro não fere. As badaladas marcam a interminável meia-noite do ser. Uma vela que ferve nos interstícios da noite. Nada que não se viva. Alcatifa que prende os movimentos. Um riso que ecoa nas salas já ocas de gente. E um baixar de ombros que se manifesta por entre aquela cumplicidade, aquela dança. Aquele amor tão eterno sem ter tido sequer ainda significado. Não há esperas. Não há segundas chances. É ela, o cobertor no chão, a essência do que cessa, a vela que se agita e o pedaço de vento que é ele. Que há de ser ele. Que é a sua ausência. E ela abraça-o. Aperta-o contra si. Nova dança? Concerteza. Até que se gastem as pedras da calçada, os diamantes, a alcatifa. Até que se desmorone todo o pesado castelo que surgiu em sua volta. Até o cobertor ser gente. Ser mais do que um agradável contacto. E não há necessidade de suster a respiração. É tudo tão rápido. Processo tão instantâneo. E de novo subir as escadas. Timidamente. A medo. Medo da fuga sem retorno. Medo dos lençóis que parecem agora menos acolhedores que as paredes corroídas e o terno frio do silêncio. Do vento. Que era ele. E deita-se. E dorme. E sonha.

E se ele é vento... Ela é brisa.
While listening to Nickelback - Far Away
«On my knees
I'll ask
One last chance
For one last dance»

terça-feira, março 14, 2006

E eram passos secos nas lajes. Passos de quem não olha para trás. De quem não se encontra e quer gritar. Quem sente nas veias a adrenalina da cegueira. A luz. A falta dela. O coração a bater junto ao pescoço como quem reclama uma vida que não é sua. Passos rápidos. Como quem se atrasa para um encontro inevitável. Como quem já não perde o que ganhou. Como quem se revolta. Se inflama. Como quem sente um livro fechar-se e cair e não corre para o segurar. Por ser o destino. Quem perdeu. Quem perdeu. E é o mármore em que se escreve a cor dos nomes. A cor dos desejos. Das vontades. Objectivo mórbido de se ultrapassar a si mesmo. De correr contra a alma. De se alastrar. De sentir algo mais quente, mais tempo do que um momento a escorrer do mundo. Como uma estrada. Como alcatrão. E ter um bom carro e sentir os pneus fumegar do calor. Sentir o vento. E correr. Correr para o indefinido. Em passos secos. Lugares escuros. Adrenalina. Falta de senso. Lacunas do espírito sem que haja amor que as remedeie. Porque é a vida. Porque quem treme, vacila. E é viver mais, mais depressa, mais e melhor, por mais, para mais. Como se o sol escurecesse e fizéssemos de tudo o vasto limite de uma corrida sem término.
While listening to Smile Empty Soul - Finding Myself
«And i thought i found my self today
And I thought that I had control
All the change in my life just fell away
For a moment I didn't need you»

segunda-feira, março 06, 2006

B&W

Andava com vontade de escrever um texto que metesse cor de ébano... Um texto que ao ler parecesse a preto e branco. Só isso ;)

«Os cabelos cor de ébano contra o solo arenoso. Tinha-se deitado. Como um corpo que jazia. Que morria. Que vivia sem querer viver. Que sucumbira. Que falecera. Como um coração que amara e nada tivera em retorno. Vestido preto que não lhe cobria uma cicatriz de que não gostava numa das pernas. Olhava o céu sem o ver. Sem esperar. Na mão direita uma pequena cruz num fio que acabara de arrancar do pescoço. Perdera a esperança. A fé. Perdera a crença fosse no que fosse. Em si mesma. Em silêncio, chorava. Chamava corvos. Conjurava pragas. Em silêncio. Com a mesma face inerte de quem se queda privado de vida. A areia levada pelo vento atingia-lhe os braços nus com violência. O mar lambia as rochas querendo levá-las consigo. Não esquecia. Não lembrava. Existia sem o ser. Queria ficar ali até a sua presença ser ausência. Até o dia escurecer e as estrelas murcharem de novo ao amanhecer. Esperar um novo ocaso, novas estrelas, novo sol. E contar os dias pelas marés. Pelas luas. Pelos grãos de areia. Esquecer o que a levara ali. A enfrentar o frio. A solidão. O negrume da mágoa. Era quem era. Infelizmente. Era quem não queria ser. »

quarta-feira, março 01, 2006

Para alguém que está do outro lado do oceano:



Com cuidado escolhi uma ponta do mar. A ponta mais azul. E escolhi uma garrafa. Do vidro mais transparente. Da qualidade mais refinada. Cristal da boémia talvez. Faltava-me uma mensagem. Tinha escolhido o oceano e a garrafa com tanto critério, tanto cuidado, que me esquecera do resto. Não podia ser muito grande ou haveria possibilidade de partir o gargalo da garrafa. Não podia ser muito pesada senão engoliria-a o mar.
Desisti da ideia. E, durante seis meses e seis noites, não pensei em mais nada. Toda a gente me dizia: “manda uma carta, não é a mesma coisa?” E eu dizia que não, não era, que tinha que ser pelo mar, tinha que ser pela garrafa. E voltavam-me a dizer “manda uma carta, manda uma carta”. Não dormi. Dava voltas e voltas na cama e não dormia. Não cerrava os olhos. Não sossegava. Mesmo com todos os elementos contra mim haveria de enviar a mensagem dentro do mais puro cristal, a partir do mais imaculado extremo daquele mar. Liguei a rádio. Talvez tentasse desviar as dúvidas. Talvez.

“Whenever, the rain comes down, the sun turns grey.”


Gostavas da música. Era a tua preferida, agora outras lhe terão precedido. E foi assim que me lembrei…

Uns tempos depois, segundo me contaram, estavas tu sentado na areia. Na areia mais incandescente, mais dourada. Abrias algo do mais puro cristal, daquele que brilha e ofusca tudo num raio de cento e oitenta e três quilómetros, que tinha viajado na mais genuína das águas e estava envolto nas mais castas algas de todo o fundo marinho. Contaram-me que olhavas intrigado para o conteúdo e sacudias a garrafa que tilintava. Tudo o que tinha eram três brilhantes gotas de chuva.

Porque choveu em mim. Choveu saudade. Porque a saudade também chove. E do céu. Do céu da alma. Do espelho da alma. Choveu-me dos olhos e quis que guardasses essa chuva para ti. Para te lembrares que por mais enevoado que esteja o teu espírito, faz sol do outro lado. Onde o mar é limpo, o cristal é puro e a areia não magoa. Para te lembrares que há sempre quem se importa com a meteorologia do espírito. Quanto mais não seja, porque se lembra de ti.

Adoro-te, primocas.